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Camila Sosa Villada sobre infância, solidão e a descoberta da escrita

  • Guilherme Dearo
  • 18 de mar.
  • 2 min de leitura

Atualizado: 4 de abr.

A atriz e escritora argentina Camila Sosa Villada (1982), uma das maiores vozes da literatura latina atual, reconhecida por debater em seus romances, poemas, contos e ensaios questões das mulheres trans e travestis, reflete no belo ensaio autobiográfico "A Viagem Inútil: Trans/Escrita" sobre seus pais, a infância em Córdoba, seu processo de alfabetização e a descoberta do poder da literatura



I. Esse período de aprendizagem com meu pai é o que me garante que "nem sempre houve guerra entre vocês". Houve amor. Ríamos juntos. Me ensinar a escrever é o gesto de amor que meu pai me oferece.


II. Não sei se alguma vez ele imaginou que, com isso, pudesse acabar tendo um filho escritor. Não sei quanta ingenuidade havia no ensinamento dele. Também digo que para um pai não deve ter nada mais horrível do que um filho escritor. Esse ofício inútil e explicável que um filho escolhe para si como destino, bem debaixo do nariz dos pais, jogando na cara deles o hábito da solidão, do distanciamento.


III. Essa foi minha grande descoberta. Uma tristeza capaz de ser reconhecida, proferida, localizada dentro de mim, localizada desde esse dia e para sempre em lugares possíveis de ser encontrada.


IV. Essa luta contra o nada é o que eu tento escrever, para que não continue se reproduzindo. Acho que a literatura põe em evidência a inutilidade da nossa luta, confundida para sempre como inimiga.


V. Para eles, escrever não produzia nada. Era um ato de vagabundagem. Costas não calejadas. Assim dizia meu pai: os escritores não têm as costas calejadas.


VI. A escrita é a coisa pesada da lembrança que não consegue passar pelo crivo da nossa memória. É também essa parte da memória que pode se tornar mentira, que pode ser julgada, ampliada, traída e amaldiçoada. O que não é filtrado é o que se dispõe a ser escrito. O resto está muito longe de nós.


VII. Alguém deposita fé em nós, até que enfim, e a gente escreve.


VIII. Escrevo e apago, como antes escrevia e jogava no lixo o que escrevia. É tão lindo. É tão bom destruir o que está escrito, porque a gente tem a sensação de destruir a si mesma. Eu chamo isso de viagem inútil, o que está na cabeça e não pode ser escrito. A vida que não se escreve.


Camila Sosa Villada. A Viagem Inútil: Trans/Escrita. Fósforo, 2024. Trad. Silvia Massimini Felix.

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