8 vezes Scholastique Mukasonga sobre estudo, família e memória
- Guilherme Dearo
- 6 de out.
- 4 min de leitura
No breve livro autobiográfico "Um Belo Diploma", a escritora ruandesa Scholastique Mukasonga lembra dos seus estudos no Burundi, sua ida à França, o genocídio de seus familiares no país natal. Lembra, também, dos ensinamentos de seus pais e da importância da educação para transformar vidas

I. O dia tão desejado da entrega do diploma enfim chegou. Eu ia mesmo possuí-lo, esse famoso papel, e esse seria o meu, em meu nome, nada menos do que para mim, eu poderia tocá-lo, desdobrá-lo, exibi-lo sob os olhares dos incrédulos que por um instante duvidaram das minhas capacidades. Seria minha salvaguarda, meu salvo-conduto nos perigos desta vida, meu verdadeiro passaporte: a única prova de que, em alguma parte do mundo, eu existia.
II. Infelizmente, logo entendi que a França das férias, a França ensolarada de julho e agosto que nós percorríamos da Normandia à Côte d’Azur, não era a mesma França do cotidiano, a da busca por emprego: eu não tinha me dado conta de que esse diploma, que tanto esforço me custara em Ruanda e no Burundi, não tinha nenhum valor na França.
III. Mais uma vez, passei a detestar meu diploma. Toda a confiança em mim que eu julgava inabalável vacilou por um instante. Mas eu tinha aprendido a encontrar no coração dos desafios com os quais me deparei desde a minha juventude, durante a minha vida atormentada, um reavivamento de energia.
“Você seguiu o caminho que traçamos para você”
IV. Como dizia minha mãe, que tinha sempre um provérbio na ponta da língua: “É preciso atentar a todos os sorgos, pois não se sabe qual vai frutificar primeiro”.
V. Não me lembro mais quando soube que o avião de Juvénal Habyarimana havia sido abatido. Foi na própria noite do 6 de abril, foi no dia seguinte? Eu não ficava com os olhos grudados na televisão, não esperava impacientemente a próxima notícia da France Info, mas no momento em que soube, entendi também que o genocídio dos tutsis começara: o extermínio programado seria posto em prática. E eu sabia que em Gitagata, onde só havia tutsis, ninguém escaparia. Atravessei aqueles dias marcados pelo que ninguém ousava ainda chamar de genocídio como uma sonâmbula. Era como se a rotina cotidiana continuasse na minha ausência: como de costume, eu arrumava a casa, preparava o jantar, cuidava dos meus filhos, parecia me interessar pelas informações que meu marido coletava. Mas tudo se passava sem mim, em outro mundo do qual eu já não mais fazia parte, que não me concernia em mais nada, que se distanciava irremediavelmente de mim, que não poderia nunca compreender minha dor, conter meu desespero. As portas da loucura se abriam como um refúgio. De que me serve esse diploma!
VI. Foi então que lembrei… Não, não era uma lembrança, era uma voz, a do meu pai, a da minha mãe, uma e outra confundidas, tenho certeza de tê-las escutado, essas duas vozes que eram uma só. Falavam comigo sem me consolar, sem apagar minha dor, mas a transformavam em uma força que brotava no âmago do meu desespero e repelia as potências da Morte: “Você seguiu o caminho que traçamos para você”. A escola, o exílio, o diploma, eu queria acreditar que eles tinham pressentido tudo isso, previsto tudo isso, que eu só precisava me deixar ser guiada: eles me seguravam pela mão. Era sem dúvida uma história muito bonita, a ilusão de um mito que eu me forjara a mim mesma para sobreviver.
Meu pai jurara que salvaria ao menos uma de suas crianças por meio da escola, e ele não se enganou.
VII. Ainda hoje, desdobro a pasta amarelada dos meus diplomas de assistente social, o burundiano, o francês, que em minha memória são um só, esse diploma que eu tanto desejei e tanto odiei, esse diploma que eu acreditava finalmente possuir e que sempre me escapava, que desaparecia para reaparecer tal uma gravidez fantasma. E não ouso perguntar a mim mesma: não havia nada melhor a fazer do que ficar obcecada correndo atrás de um pedaço de papel?
VIII. Cosmas, meu pai, posso dizer que lhe devo duas vezes a vida. Primeiro, é meu pai, mas foi também ele quem me encorajou a ir à escola, eu que, criancinha, preferia dar meus passinhos miúdos agarrada no pagne da minha mãe e, como ela, cultivar o campo com minha pequena enxada, como ela cuidar das minhas irmãs mais novas. Meu pai não perdia nenhuma oportunidade: quando, na escuridão da noite, sob a grande bananeira no fundo do quintal, ia tomar seu banho, ele me incumbia, como primogênita das filhas, de esfregar suas costas. Aproveitava esse raro momento de intimidade para lembrar que a única coisa que devia importar para mim era o êxito na escola. Também foi ele quem me arrastou até a escola, sob a ameaça do seu bastão paterno, no dia do exame nacional ao qual eu me recusava a me apresentar sabendo que, como tutsi, eu não tinha nenhuma chance de ter êxito e conseguir assim o meu diploma. Foi graças a ele que o francês, que ele não conhecia, tornou-se para mim essa segunda língua, que foi meu passaporte e minha salvação. Meu pai jurara que salvaria ao menos uma de suas crianças por meio da escola, e ele não se enganou.
Um Belo Diploma. Scholastique Mukasonga. Editora Nós, 2021. Trad. Raquel Camargo.
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