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Bernardine Evaristo sobre nunca desistir da escrita e da literatura

  • Guilherme Dearo
  • 24 de mar.
  • 7 min de leitura

Em "Manifesto: Sobre Nunca Desistir", a celebrada autora britânica, famosa por seus personagens marcantes e suas inovações estilísticas, mistura memória familiar e reflexões sobre o fazer literário para contar aos leitores sobre a criação dos seus livros e sobre a necessidade de persistir no caminho da literatura, sem deixar de lado análises urgentes sobre sexualidade, raça e racismo



1. A ideia de ficar presa a uma dívida hipotecária me assustava. Imaginava que teria que aceitar um emprego das nove às cinco para poder pagá-la, fazendo algo que odiava. Antevia, sendo bastante melodramática, minhas emoções entorpecidas pela rotina, minha imaginação assassinada, meu espírito livre aprisionado, meus sonhos irrealizados.


2. Como escritora, Londres tem sido uma das minhas musas, minha conexão com ela é profunda, e isso foi estimulado por ter vivido em muitos dos seus distritos. Passei toda a minha vida adulta circulando por Londres em todos os meios de transporte, incluindo os dois pés, e absorvendo tudo. Uma olhada superficial nos meus livros revela a presença de Londres através de diversas repetições: contemporânea, histórica, reinventada como universos alternativos.


3. A escrita se tornou um lugar só meu; a escrita se tornou meu lar permanente.


4. Essa paixão, esse estado de prostração hipersensível, se tornou uma força motriz da minha escrita, pois nunca quis ser o tipo de escritora cerebral cujo trabalho era intelectualmente fértil, mas emocionalmente árido. Queria ser o tipo de escritora capaz de atingir as pessoas num nível mais profundo — o poder de tocar, de comover —, e eu nunca era mais emotiva do que quando estava num relacionamento, ou querendo estar em um.


5. A autoconfiança, que eu vinha desenvolvendo antes do relacionamento e reconstruí depois dele, é a coisa mais importante que um escritor precisa ter, sobretudo quando o encorajamento alheio pelo qual ansiamos não vem.


6. Com o tempo, meu pensamento se tornou mais refinado, o que, por sua vez, determinaria minha abordagem ao construir personagens na minha futura escrita de ficção. Aprendi que não existem duas pessoas iguais e que é falta de imaginação criá-las como se fossem — todos os personagens fictícios têm de ser individuais; que a divisão dos personagens em bonzinhos e malvadões é uma abordagem infantil que deveria continuar relegada aos contos de fadas antiquados; que o ato de homogeneizar um gênero ou grupo racializado é um desserviço à humanidade de todos; que seres humanos de todas as raças, gêneros e sexualidades são complexos e contraditórios e capazes de oprimir os outros, seja na esfera pessoal, comunitária ou governamental; e que todos somos capazes de ter comportamentos moralmente questionáveis.


7. Como contadora de histórias, sou constantemente instigada a compreender e a transmitir a psicologia humana e a habitar a vida dos meus personagens, sentindo-os por dentro, do mesmo jeito que fazia como atriz. Minha inclinação como romancista tem sido escrever narrativas em primeira pessoa e desenvolver as habilidades de ventríloqua necessárias para dar vida a elas. Isso remonta, em primeiro lugar, à época em que era atriz e, depois, à pessoa que também escrevia e interpretava os próprios roteiros. A coalescência do ato de escrever com a arte da representação teatral enriqueceu minha compreensão das possibilidades de caracterização na ficção, que persiste até hoje.


8. Logo aprendi que boa parte da escrita é na verdade reescrita, e que as palavras que você rabisca na página são um material bruto a partir do qual você talvez seja capaz de esculpir algo relevante. Nós, escritores, passamos a vida aprendendo a manipular a linguagem para expressar com precisão aquilo que desejamos comunicar. Mesmo enquanto escrevo isto, faço ajustes constantes de vocabulário e reestruturo as frases para que façam jus à minha intenção.


9. Gêneros literários não são meros rótulos externos. São técnicas, abordagens, infraestruturas e métodos que favorecem os conceitos por trás da nossa escrita.


10. ara mim, o processo criativo é um experimento — tentativa e erro —, uma viagem rumo ao desconhecido que nos leva a novas descobertas.


11. Normalmente passo anos trabalhando em um livro sem mostrá-lo a ninguém, porque quero saber o que eu acho do meu trabalho antes de outra pessoa me dar sua opinião.


12. Quase sempre falo dos meus personagens como se eles escrevessem a si mesmos. Tenho uma faísca de ideia para um e, através do ato da escrita, ele se torna de carne e osso. Barrington foi o exemplo perfeito disso. Sinto que ele se escreveu até vir a existir, e aí seguiu em frente e escreveu sua história por mim.


13. Enquanto escritores, podemos estar próximos demais do texto para enxergar com clareza aquilo que escrevemos e, a menos que estejamos escrevendo apenas para nós mesmos, precisamos de pessoas que avaliem o nosso trabalho em andamento de forma crítica e ofereça retornos construtivos.


14. Ainda assim, no começo, quando recebia um feedback crítico que demandava uma boa reescrita, costumava ficar chateada, embora nunca deixasse isso transparecer. Escondia o manuscrito em uma gaveta, sem querer vê-lo por perto, tirando sarro de mim por conta da enormidade da tarefa pela frente. Depois que começava as reescritas e via como os romances melhoravam, ficava aliviada de ver que as fraquezas deles haviam sido identificadas antes da publicação. Com o tempo fiquei mais calejada e sempre recebo bem os comentários dos editores. Sou a escritora que sou porque trabalho com meu editor e sua equipe, que nunca aceitaram nada menos que o meu melhor.


15. Escrever é bem, bem mais do que um exercício técnico. No passado, derramei lágrimas junto com meus personagens quando fiz da vida deles um inferno, ou os fiz pensar em traumas do passado ou relembrar entes queridos que haviam perdido.



16. Escrever um romance requer resistência e uma energia implacável, ainda mais quando você não tem certeza se está indo na direção certa e precisa começar de novo. Cada minuto, cada hora, cada dia, cada semana, cada mês, cada ano gastos trabalhando em um manuscrito para que ele materialize a sua ambição requer uma dedicação imensa. Para cada escritor que produz um romance em dois tempos, há muitos outros de nós para quem o processo de escrita é bem mais complicado, embora não seja desprovido de diversão. Quando escritores reclamam que escrever é doloroso, me pergunto por que escrevem. Sem dúvida escrevemos porque é incrivelmente recompensador.


17. Escrevo porque sinto urgência em contar histórias, mesmo quando não sei o que essas histórias vão se tornar, ou o que vão revelar quando estiverem terminadas.


18. Não penso demais nesse processo, porque isso atrapalha a escrita. Dou sentido aos temas dos meus romances quando estão concluídos e preciso contextualizar o que escrevi. Só então tenho condições de formular aquilo que considero que sejam suas temáticas subterrâneas. A maioria dos escritores não consegue escapar de falar a respeito dos próprios livros como parte do jogo de autopromoção, e é aconselhável que tentemos definir nós mesmos os seus contextos. Se sabemos que estamos realizando algo diferente porque lemos muita coisa a respeito da nossa temática, precisamos assumir o controle e deixar isso claro. No entanto, nossos livros existem como obras de arte por si só e, uma vez publicados, estão por conta própria no mundo.


19. Nós, escritores, precisamos desenvolver uma casca grossa — domar nossas decepções e nos tornar estoicos no que diz respeito ao feedback negativo. Alguns ficam arrasados facilmente quando seu primeiro livro não entra na lista de mais vendidos, quando recebem resenhas decepcionantes, ou quando a editora desiste deles, e se sentem desmotivados demais para tentar encontrar outra, ou para apostar na autopublicação se precisarem. Outros são muito elogiados pelo primeiro livro, mas não tanto pelo segundo, algo de que nunca se recuperam.


20. Tenho muito cuidado para não elogiar demais meus alunos de escrita criativa porque muitos não são capazes de lidar com isso. A transformação de humilde e entusiasmado em arrogante e intratável pode se dar em poucas horas.


21. A maneira como nos portamos quando nossos livros estão à disposição do público pode fazer a diferença entre uma carreira duradoura e uma carreira efêmera. E não importa o quanto os nossos livros estejam se saindo bem, sempre vai haver dissidentes que não gostam deles, que acham que são superestimados. É uma forma de pôr os pés no chão.


22. Talvez a razão pela qual tenha seguido em frente como escritora ao longo das décadas seja minha capacidade e, no fundo, meu desejo de recolhimento e introspecção, como requer a escrita, e isso foi cultivado desde o momento em que fui capaz de ler por conta própria quando criança.


23. Como escritora, preciso ouvir meus personagens falarem para que ganhem vida dentro da minha cabeça, e minha propensão às narrativas em primeira pessoa faz deste um requisito essencial na construção de uma ficção convincente. A palavra falada se torna a palavra escrita, ou melhor, a palavra ouvida se torna a voz do personagem.


24. Levou um tempo até superar a vozinha insistente na minha cabeça dizendo que eu nunca seria tão boa quanto elas. Tive que aprender que nunca escreveria como pessoas que pertenceram a uma geração, cultura e contexto diferentes. Só precisava escrever como eu mesma, embora falar seja bem mais fácil do que fazer.


25. Alguns dos meus alunos dizem que querem escrever livros a fim de se tornarem ricos e famosos. Não é um excelente motivo para seguir o caminho das artes, embora não haja nada de errado em desejar qualquer um desses indicadores de sucesso, mas a realidade é que manter uma carreira duradoura como escritor exige uma conexão mais estreita com o ofício.


26. Tinha aprendido com meu próprio treinamento de desenvolvimento pessoal que comparações são autodestrutivas, então me esforcei para focar em minha trajetória singular e expulsar qualquer ressentimento do meu íntimo. Via como isso arrasava outros escritores, que se tornavam amargurados, reclamando, culpando, às vezes sofrendo bloqueio criativo como resultado.


27. Escritores criativos têm orgulho de serem os curadores da própria imaginação; valorizamos nossa capacidade de conceber ideias e de encontrar formas interessantes de expressá-las. Concedo a mim mesma licença artística total para escrever a partir de múltiplas perspectivas e para habitar diferentes culturas, sem ligar para as aparentes barreiras de raça, cultura, gênero e sexualidade.


28. Não é só um trabalho ou uma paixão, é o próprio âmago de como existo no mundo, e sou viciada nessa aventura de contar histórias como meu meio mais poderoso de comunicação.


29. Todo mundo deveria ter a oportunidade de criar, compartilhar & consumir histórias que reflitam sua cultura & comunidades, para todos nos sentirmos igualmente validados.


30. Contadores de histórias devem superar todos os obstáculos internos & externos ao priorizar nosso compromisso com ambição, trabalho duro, ofício, originalidade & irrefreabilidade.


31. Seja rebelde, desobediente & audaz com sua criatividade, assuma riscos em vez de seguir por estradas previsíveis; aqueles que se movem dentro dos limites seguros não fazem nossa cultura ou civilização avançar.


32. O sucesso pessoal é mais significativo quando usado para melhorar comunidades que de outro modo ficariam esquecidas. Estamos interligados & devemos cuidar uns dos outros.


33. Os ancestrais oscilam em silêncio atrás de nós, as almas mortas dos que já partiram e que são a razão pela qual viemos a existir — devemos nos lembrar deles.


Bernardine Evaristo. Manifesto: Sobre Nunca Desistir. Companhia das Letras, 2022. Trad. Camila Von Holdefer.

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