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12 vezes Ricardo Piglia sobre o que é ser um leitor

  • Guilherme Dearo
  • 23 de jul.
  • 4 min de leitura

Em "O Último Leitor", o escritor argentino falecido em 2017 explora a pergunta crucial "Afinal, o que é um leitor?" e dialoga com Shakespeare, Kafka, Joyce, Puig, Pound e tantos outros


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I. A leitura, dizia Ezra Pound, é uma arte da réplica. Às vezes os leitores vivem num mundo paralelo e às vezes imaginam que esse mundo entra na realidade.


II. Na literatura, aquele que lê está longe de ser uma figura normalizada e pacífica (não fosse assim, não haveria narração); antes, aparece como um leitor extremo, sempre apaixonado e compulsivo.


III. A pergunta “o que é um leitor?” é, sem sombra de dúvida, a pergunta da literatura. Essa pergunta a constitui, não é externa a si mesma, é sua condição de existência. E a resposta a essa pergunta — para benefício de todos nós, leitores imperfeitos porém reais — é um texto: inquietante, singular e sempre diverso.


IV. Talvez o maior ensinamento de Borges seja a certeza de que a ficção não depende apenas de quem a constrói, mas também de quem a lê.


V. A leitura é ao mesmo tempo a construção de um universo e um refúgio diante da hostilidade do mundo.


VI. Melhor seria dizer: a leitura constrói um espaço entre o imaginário e o real, desmonta a clássica oposição binária entre ilusão e realidade. Não existe nada simultaneamente mais real e mais ilusório do que o ato de ler. Muitas vezes o ponto em que se cruzam o sonho e a vigília, a vida e a morte, o real e a ilusão, é representado pelo ato de ler.


VII. Depois do encontro crucial com o fantasma do pai, Hamlet, como dissemos, entra com um livro na mão. Era muito raro que Shakespeare fizesse marcações de cena, mas desde as primeiras edições consta a especificação: “Hamlet entra lendo um livro”. Não sabemos que livro ele lê, e não vem ao caso. Mais adiante, Hamlet descarta a importância do conteúdo. Polônio lhe pergunta o que está lendo. “Palavras, palavras, palavras”, responde Hamlet. O livro está vazio; o que importa é o próprio ato de ler, sua função na tragédia. A leitura, como dissemos, é vista como isolamento e solidão, como outro tipo de subjetividade. Nesse sentido, Hamlet é um herói da consciência moderna porque é um leitor. O que está em jogo é a interioridade.


VIII. A máquina de escrever separa historicamente a escrita artesanal e a edição. Altera o modo de ler o original, ordena-o. Na realidade, foi inventada para copiar manuscritos e facilitar o ditado, mas num instante transformou-se em instrumento de produção. (...) "A inconveniência de escrever à máquina é que se perde o fio", diz Kafka a Felice em sua primeira carta de 20 de setembro. A máquina de escrever não é para escrever, produz uma deriva, perde-se a linha, a continuidade, a mão se distancia do corpo, se mecaniza ("a mão que nesses momentos está acionando as teclas", observa Kafka na terceira pessoa nessa carta a Felice).


IX. É frequente que a ideia de alguém que tem apenas um livro em que se cifra um mundo perdido se reproduza em escala ampliada. Orwell em 1984, Bradbury em Fahrenheit 451, Aldous Huxley em Admirável mundo novo, entre outros, narraram mundos futuros em que o ato de ler foi proibido e a leitura considerada uma prática subversiva. É a condensação da ameaça pura: uma sociedade que liquida todo tipo de autonomia, ocupa todos os espaços e impede a privacidade. Não obstante, nesses relatos em que a leitura está controlada e proibida sempre existe alguém que lê: um único leitor ou uma associação secreta de leitores em fuga.


X. As últimas pessoas a ver Ossip Mandelstam, o poeta russo que morre num campo de concentração na época de Stálin, lembram-se dele diante de uma fogueira, na Sibéria, em meio à desolação, rodeado por um grupo de prisioneiros a quem fala de Virgílio. Evoca a leitura de Virgílio, e essa é a última imagem do poeta. A cena reforça a ideia de que há alguma coisa que deve ser preservada, alguma coisa que a leitura acumulou como experiência social. Não se trataria de exibição de cultura, mas, ao contrário, de cultura como resto, como ruína, como exemplo extremo do desprovimento.


XI. “Que livro você levaria para uma ilha deserta?” é uma das perguntas fundamentais da sociedade de massas. Sem dúvida ela tem Robinson Crusoé como ponto de partida e supõe que para sair da multiplicidade ou da proliferação do mercado é preciso estar numa ilha deserta. A pergunta é precavida e inclui várias outras: “Que livro você leria se não pudesse fazer outra coisa?”. E ainda: “Que livro você imagina que seria de utilidade pessoal para você, caso tivesse que sobreviver em condições extremas?”. É evidente que existe uma teoria da leitura implícita na pergunta.


XII. Manuel Puig contava que toda vez que começava a ler um romance começava a escrevê-lo.


Ricardo Piglia. O Último Leitor. Companhia das Letras, 2006. Trad. Heloisa Jahn.

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