15 vezes Susan Sontag sobre guerra, fotografia e memória em "Diante da Dor dos Outros"
- Guilherme Dearo
- 13 de nov.
- 4 min de leitura
A escritora e ensaísta americana Susan Sontag (1933-2004) analisa éticas, estéticas e efeitos na tradição das fotografias de guerra e seus modernos espetáculos midiáticos, refletindo sobre a eficácia de expor às pessoas ao horror em busca de centelhas de piedade, revolta e ação

Recordar é um ato ético
1. Por longo tempo algumas pessoas acreditaram que, se o horror pudesse ser apresentado de forma bastante nítida, a maioria das pessoas finalmente apreenderia toda a indignidade e a insanidade da guerra.
2. Ser um espectador de calamidades ocorridas em outro país é uma experiência moderna essencial, a dádiva acumulada durante mais de um século e meio graças a esses turistas profissionais e especializados conhecidos pelo nome de jornalistas. Agora, guerras são também imagens e sons na sala de estar.
3. A caçada de imagens mais dramáticas (como, muitas vezes, são definidas) orienta o trabalho fotográfico e constitui uma parte da normalidade de uma cultura em que o choque se tornou um estímulo primordial de consumo e uma fonte de valor. “A beleza será convulsiva, ou não será”, proclamou André Breton.
4. Desde quando as câmeras foram inventadas, em 1839, a fotografia flertou com a morte. Como uma imagem produzida por uma câmera é, literalmente, um vestígio de algo trazido para diante da lente, as fotos superavam qualquer pintura como lembrança do passado desaparecido.
5. Na fotografia de atrocidades, as pessoas querem o peso do testemunho sem a nódoa do talento artístico, tido como equivalente à insinceridade ou à mera trapaça. Fotos de acontecimentos infernais parecem mais autênticas quando não dão a impressão de terem sido “corretamente” iluminadas e compostas porque o fotógrafo era um amador ou — o que é igualmente aproveitável — adotou um dos diversos estilos sabidamente antiartísticos.
6. Não existe guerra sem fotografia, observou o notável esteta da guerra Ernst Jünger em 1930, refinando dessa maneira a irreprimível identificação da câmera com a arma: “disparar” a máquina fotográfica apontada para um tema e disparar a arma apontada para um ser humano. Guerrear e fotografar são atividades congruentes: “É a mesma inteligência, cujas armas de aniquilação são capazes de localizar o inimigo com exatidão de metros e de segundos”, escreveu Jünger, “que se empenha a fim de preservar o importante acontecimento histórico em detalhes nítidos”.
7. Quanto mais remoto ou exótico o lugar, maior a probabilidade de termos imagens frontais completas dos mortos e dos agonizantes.
8. Fotos aflitivas não perdem necessariamente seu poder de chocar. Mas não ajudam grande coisa, se o propósito é compreender. Narrativas podem nos levar a compreender. Fotos fazem outra coisa: nos perseguem.
9. No início da modernidade, pode ter sido mais fácil reconhecer que existe um tropismo inato orientado para o horrível. Edmund Burke observou que as pessoas gostam de olhar para imagens de sofrimento. “Estou convencido de que extraímos um grau de prazer, e não pequeno, dos infortúnios e das dores reais dos outros”, escreveu em Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo (1757). “Não há espetáculo que busquemos com mais avidez do que o de alguma calamidade invulgar e angustiante.”
10. Um dos principais teóricos do erótico, Georges Bataille, tinha sobre sua escrivaninha, onde a podia olhar todos os dias, uma foto tirada na China, em 1910, de um prisioneiro no momento em que padecia “a morte de cem cortes”. (Lendária, desde então, ela é reproduzida no último livro de Bataille publicado em vida, em 1961, As lágrimas de Eros.) “Essa fotografia”, escreveu Bataille, “teve um papel decisivo na minha vida. Nunca deixei de me sentir obcecado por essa imagem de dor, a um só tempo extasiante e intolerável.” Segundo Bataille, contemplar essa imagem constitui tanto uma mortificação dos sentimentos como uma libertação do conhecimento erótico assinalado como tabu — uma reação complexa que muitos devem julgar difícil de acreditar.
As imagens dizem: é isto o que seres humanos são capazes de fazer
11. Uma cidadã de Sarajevo, uma mulher completamente adepta do ideal iugoslavo a quem conheci pouco depois de chegar à cidade, pela primeira vez, em abril de 1993, me disse: “Em outubro de 1991, eu estava aqui no meu simpático apartamento, numa Sarajevo pacífica, quando os sérvios invadiram a Croácia, e lembro que quando o noticiário da noite mostrou imagens da destruição de Vukovar, a poucas centenas de quilômetros, pensei comigo mesma: ‘Ah, que horror’, e mudei de canal. Portanto, como posso indignar-me se alguém na França ou na Itália ou na Alemanha vê a matança que ocorre aqui, dia após dia, nos noticiários noturnos e diz: ‘Ah, que horror’, e procura outro programa. É normal. É humano”. Onde quer que as pessoas se sintam seguras — este era o seu raciocínio amargurado e autorrecriminador —, hão de se sentir também indiferentes.
12. Num mundo saturado, ou melhor, hipersaturado de imagens, aquelas que deveriam ser importantes para nós têm seu efeito reduzido: tornamo-nos insensíveis. No fim, tais imagens apenas nos tornam um pouco menos capazes de sentir, de ter nossa consciência instigada.
13. Mostrar um inferno não significa, está claro, dizer-nos algo sobre como retirar as pessoas do inferno, como amainar as chamas do inferno. Contudo, parece constituir um bem em si mesmo reconhecer, ampliar a consciência de quanto sofrimento causado pela crueldade humana existe no mundo que partilhamos com os outros.
14. As imagens dizem: é isto o que seres humanos são capazes de fazer — e ainda por cima voluntariamente, com entusiasmo, fazendo-se passar por virtuosos. Não esqueçam.
15. Recordar é um ato ético, tem um valor ético em si mesmo e por si mesmo. A memória é, de forma dolorosa, a única relação que podemos ter com os mortos.
Susan Sontag. Diante da Dor dos Outros. Companhia das Letras, 2025. Trad. Rubens Figueiredo.



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